quarta-feira, 13 de junho de 2012


Literatura: teoria e história
A literatura em lingua portuguesa não se restringe a autores brasileiros e portuguese. Sobretudo a partir do século XX, nos paises africanos que também foram colonizados por Portugal, como Angola, Moçambique e Guiné-Bissau, tem-se desenvolvido uma produção literária em língua portuguesa muito rica e variada.
Numa cultura marcada pela força do oral como é a aficana, os griots exercem papel fundamental  na conservação da palavra, da narração, do mito. São guardiões, intérpretes e cantores da história oral de muitos povos africanos, e costumam ser acompanhados ser acompanhados por instrumentos musicais, como a kora ou o xilofone. Na foto a cima, griots em Mali, 2004.



Uma Literatura e Engajada
A literatura não se preocupa em mobilizar apenas o sentimento do leitor, mas sua consciência, Por isso, muitas vezes trata de questões politicas e ideológicas. Quando esse objetivo predomina numa produção literária, estamos no terreno da literatura engajada, que, grosso modo, procura denunciar aspectos problemáticos da realidade em que vive o escritor, de forma a construir para que se produzam certas mudanças na sociedade da qual ele faz parte.
Na literatura africana em língua portuguesa predomina esse engajamento, que se centra nas lutas pela libertação dos territórios colonizados pelos portugueses.
Como se sabe, diversos países do continente africano foram ocupados pelos portugueses dese o século XV: Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Ilhas de São Tomé e Príncipe, o arquipélago de Cabo Verde. O processo de libertação desses países só se concluiu em 1974.
Muitos escritores africanos do século XX participaram ativamente na luta pela libertação desses povos. Agostinho Neto, por exemplo, fundou o clandestino Movimento anticolonialista (MAC). O Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique) contou com a participação de vários escritores.


Panorama da Literatura Africana

A literatura africana expressa-se em mais de um idioma. A que nos interessa é a literatura africana em língua portuguesa. Trata-se de uma visão de mundo concretizada por meio da mesma língua que se fala em Portugal e no Brasil e, por isso, tem relação com nosso patrimônio cultural.
Divulgada no Brasil de forma mais sistemática apenas nas duas últimas décadas, a literatura africana é uma fonte bastante consistente de conhecimento a respeito de algumas nações africanas assim como de nossas raízes culturais e da notável integração das duas culturas: muitos autores brasileiros influenciaram autores africanos.
Neste breve estudo, consideraremos apenas a literatura escrita, mas não se deve esquecer da literatura oral que circula nas nações africanas, literatura rica em contos, fábulas, mitos, lendas, entre outros gêneros.
Do século XVI ao século XIX, mais de 90% da população dominada pelos portuguese não sabia ler nem escrever. Consequentemente, a população literária constituía-se, como no Brasil do século XVI, da literatura de viagens. São obras de escritores portugueses, voltadas para o exotismo da África.
Uma literatura de caráter nacional despontou timidamente no inicio do século XX, no período dos movimentos da negritude. O romance O segredo da morta, de Antonio de Assis Júnior, que foi publicado como folhetim em um jornal angolano e depois em livro (1935) é um marco na historia da literatura angolana de caráter nacional. Obra de mistério arquitetada com admirável técnica, incorpora um vasto repertório de provérbios, adivinhas e expressões populares de Angola. É o olhar nacional que se impõe ao colonizador.
Mas foi na segunda metade do século XX que despontaram de fato os escritores de ascendência africana. A produção predominante é de poesia, e muitos dos nomes mais expressivos dessa poesia também fazia parte dos movimentos de libertação.
As lutas dos povos africanos pela libertação do domínio  português só se acentuariam a partir de 1960, e a resolução dos conflitos se daria em 1974, quando Portugal, após a queda do regime salazarista, entregou os territórios colonizados aos legítimos donos.
Depois da libertação, apesar de língua portuguesa não ser falada por toda a população, foi ela a eleita como língua oficial dos cinco países africanos que passaram por esse processo.
Na fase que se seguiu á Independência (1974),  tendências literárias diversas formaram a literatura africana de expressão portuguesa. Entretanto, o consumo dessa literatura na própria África é pequena, pois boa parte da população da população do continente ainda é analfabeta.

Alguns Autores e Obras:

Agostinho Neto
            Agostinho Neto (1922-1979), fez parte            
            da geraçãode estudantes africanos que
            desempenhou papel fundamental no
            processo de Independência de seu
            país na chamada Guerra Colonial
            Portuguesa ou Guerra do Ultramar.

Obra:

Noite
Agostinho Neto 

Eu vivo
nos bairros escuros do mundo
sem luz nem vida.

Vou pelas ruas
às apalpadelas
encostado aos meus informes sonhos
tropeçando na escravidão
ao meu desejo de ser.

São bairros de escravos
mundos de miséria
bairros escuros.

Onde as vontades se diluíram
e os homens se confundiram
com as coisas.

Ando aos trambolhões
pelas ruas sem luz
desconhecidas
pejadas de mística e terror
de braço dado com fantasmas.

Também a noite é escura.
 


Luandino Viera


               Português de nascimento, passou a
               juventude em Luanda, onde concluiu
               os estudos secundários. Durante a
               Guerra Colonial, combateu nas
               fileiras do mpla, contribuindo para a
               criação da república popular de
               angola.
               
criação da república popular de
               angola.

    
Obra:

Na obra A cidade e a infância, o autor Luandino Vieira revela sua própria conscientizaçã politica. Vamos ler um conto desse livro.

A fronteira de asfalto
Luandino Vieira

“A menina das tranças loiras olhou para ele, sorriu e estendeu a mão.
… – Combinado?
- Combinado – Disse ele.
Riram os dois e continuaram a a andar, pisando as flores violeta que caiam das árvores.
- Neve cor de violeta – disse ele.
- Mas tu nunca viste neve…
- Pois não ,mas creio que cai assim…
- É branca, muito branca…
- Como tu!
e um sorriso triste aflorou medrosamente aos lábios dele.
- Ricardo! Também há neve cinzenta… cinzenta escura.
- Lembra-te da nossa combinação. Não mais…
- sim, não mais clara da tua cor. Mas quem falou primeiro fostes tu.
Ao chegarem a ponta do passeio ambos fizeram meia volta e vieram pelo mesmo caminho.
A menina tinha tranças loiras e laços vermelhos.
- Marina, lembras-te da nossa infância? – e voltou-se subitamente para ela.
Olhou-a nos olhos. A menina baixou olhar para a biqueira dos sapatos pretos e disse:
- Quando tu fazias carros com rodas de patins e me empurravas a volta do bairro?
- Sim lembro-me…
A pergunta que o persegui há meses saiu, finalmente.
- e tu achas que esta tudo como então? Como quando brincavamos a barra do lenço ou as escondidas? Quando eu era o teu amigo Ricardo, um pretinho muito limpo e educado, no dizer da tua mãe? Achas…
E com as própria palavras ia-se excitando. Os olhos brilhavam e o cérebro ficava vazio, porque tudo o que acumulara saía numa torrente de palavras.
-… que eu posso continuar a ser teu amigo…
- Ricardo!
- que a minha presença na tua casa…no quintal da tua casa, poucas vezes dentro dela ! não estragará os planos da tua família a respeito das tuas relações…
Estava a ser cruel. Os olhos azuis de Marina não lhe diziam nada. Mas estava a ser cruel.
O som da própria voz fê-lo ver isso. Calou-se subitamente.
- Desculpa – disse por fim.
Virou os olhos para o seu mundo. Do outro la da rua asfalatada não havia passeio. Nem árvores de flores violeta. A terra era vermelha. Piteiras. Casas de pau-a-pique a sombra de mulembas. As ruas de areia eram sinuosas. Uma ténue nuvem de poeira que o vento levantava cobria tudo. A casa dele ficava ao fundo. Via-se do sítio donde estava. Amarela. Duas portas, três janelas. Um cercado de aduelas e arcos de barril.
- Ricardo – disse a menina das tranças loiras – tu dissetes isso para quê? Alguma vez te disse que não era tua amiga? Alguma vez que se te abandonei ? Nem os comentários da minhas colegas, nem os conselhos velados dos professores, nem a família que se tem voltado contra mim…
- Está bem. Desculpa. sabes, isto fica dentro de nós. Tem de sair em qualquer altura.
E lembrava-se do tempo em que não havia perguntas, respostas, explicações. Quando ainda não havia a fronteira de asfalto.
- Bons tempos – encontrou-se a dizer.
- A minha mãe era a tua lavadeira. Eu era o filho da lavadeira. Servia de palhaço a menina Nina. A menina Nina dos caracóis loiros. Não era assim que te chamavam? – Gritou ele.
Marina fugiu para casa. Ele ficou com os olhos marejados, as mãos ferozmente fechadas e as flores violeta caindo-lhe na carapinha negra.
Depois, com passos dicididos, atravessou a rua, pisando com raiva a areia vermelha e sumiu no emaranhado do seu mundo. Para trás ficava a ilusão.
Marina viu-o afastar-se. Amigos desde pequenos. Ele era o filho da lavadeira que distraía a menina Nina. Depois a escola. ambos na mesma escola ,na mesma classe. A grande amizade a nascer.
Fugiu para o quarto.Bateu com a porta. Em volta o aspecto luminoso, sorridente, o ar feliz, o calor suave das paredes cor-de-rosa.          E lá estava sobre a mesa de estudo «… Marina e Ricardo – amigos para sempre». Os pedaços da fotografia voaram e estenderam-se pelo chão. Atirou-se para cima da cama e ficou de costas a olhar o tecto. Era ainda o mesmo candeeiro. Desenhos de Walt Disney. Os desenhos iam-se diluindo nos olhos marejados. E tudo se cobriu de névoa. Ricardo brincava com ela. Ela corria feliz, o vestido pelos joelhos, e os caracóis loiros brilhavam. Ricardo tinha uns olhos grandes. E subitamente ficou a pensar no mundo para lá da rua asfaltada. E reviu as casas de pau-a pique onde viviam famílias numerosas. Num quarto como o dela dormiam os quatro irmãos de Ricardo…Porquê? Porque é que ela não podia continuar a ser amiga dele, como fora em criança? Porque é que agora era diferente?
- Marina, preciso falar-te.
A mãe entrara e acariciava os cabelos loiros da filha.
- Marina, já não és nenhuma criança para que não compreendas que a tua amizade por esse… teu amigo Ricardo não pode continuar. Isso é muito bonito em criança. Duas crianças. Mas agora … um preto é um preto…
As minhas amigas todas falam da minha nigligência na tua educação. Que te deixei…Bem sabes que não é por mim!
- Está bem, eu faço o que tu quiseres. Mas agora deixa-me só.
O coração vazio. Ricardo não era mais que uma recordação longínqua. Uma recordação ligada a uns pedaços de fotografia que voavam pelo pavimento.
- Deixas de ir com ele para o liceu, de vires com ele do liceu, de estudares com ele…
- Está bem mãe.
E virou a cabeça para a janela. Ao longe percebia-se a mancha escura das casas de zinco e das mulembas. Isso trouxe-lhe novamente Ricardo. Virou-se subitamente para a mãe. Os olhos brilhantes, os lábios arrogantemente apertados.
- Está bem , está bem, ouviu? – gritou ela.
Depois megulhando a cara na colcha chorou.
Na noite de luar, Ricardo, debaixo da mulemba, recordava. Os giroflés e a barra do lenço. Os carros de patins. E sentiu necessidade imperiosa de falar-lhe. Acostumara-se demasiado a ela. Todos aqueles anos de camaradagem, de estudo em comum.
Deu por si a atravessar a fronteira. Os sapatos de borracha rangiam no asfalto. A lua punha uma cor crua em tudo. Luz na janela. saltou o pequeno muro. Folhas secas rangeram debaixo dos seus pés. O “Toni” rosnou na casota. Avançou devagar até a varanda, subiu o rodapé e bateu com cuidado.
- Quem é? – a voz de Marina veio de dentro, íntima e assustada.
- Ricardo!
- Ricardo? Que queres?
- Falar contigo.Quero que me expliques o que se passa.
- Não posso. Estou a estudar. Vai-te embora. amanhã na paragem do maximbombo. Vou mais cedo…
- Não. Precisa de ser hoje. Preciso de saber tudo já.
De dentro veio a resposta muda de Marina. A luz apagou-se. Ouvia-se chorar no escuro. Ricardo voltou-se lentamente. Passou as mãos nervosas pelo cabelo. E, subitamente o facho da lanterna do polícia caqui bateu-lhe na cara.
- Alto aí! O qu’ é que estás a fazer?
Ricardo sentiu medo. O medo do negro pelo polícia. Dum salto atingiu o quintal.
as folhas secas cederam e ele escorregou. O “Toni” ladrou.
Ricardo levantou-se e correu para o muro.O polícia correu também. Ricardo saltou.
- Pára, pára! – gritou o polícia.
Ricardo não parou. Saltou o muro. Bateu no passeio com a violência abafada pelos sapatos de borracha.
Mas os pés escorregaram quando fazia o salto para atravessar a rua. Caiu e a cabeça bateu violentamente de encontro a aresta do passeio.
Luzes acenderam-se em todas as janelas. O “Toni” ladrava. Na noite ficou o grito loiro da menina de tranças.
Estava um luar azul de aço. A lua cruel mostrava-se bem. De pé o polícia caqui desnudava com a luz da lanterna o corpo caído. Ricardo , estendido do lado de cá da fronteira , sobre as flores violeta das árvores do passeio.
Ao fundo, cajueiros curvados sobre casas de pau-a-pique estendem a sombra retorcida na sua direcção.”




Curta metragem do conto a fronteira de asfalto:




Pepetela